JULES BARBEY D'AUREVILLY
Recensão
(Mário Rosa)
«Les hommes… comme moi, n’ont été faits, de toute éternité, que pour étonner les hommes… comme toi.»
Jules Amédée Barbey d’Aurevilly foi um escritor francês, nasceu em 1808 e morreu em 1889. Foi ao mesmo tempo romancista, poeta, crítico literário, jornalista e, sobretudo, dandy. Converteu-se ao catolicismo em 1846.
O que tem de particular este escritor? A frase que abre esta recensão, de um conto seu, é a melhor caracterização de Barbey: «homens … como eu foram feitos, desde tempos imemoriais, para “escandalizar” homens…como tu». O protagonista da frase tinha acabado de sair de uma Igreja quando foi questionado e criticado pelo seu amigo ferozmente ateu.
A maior parte dos seus escritos, para serem correctamente entendidos, são aconselháveis para pessoas que estão dentro da literatura moderna e, sobretudo, anticristã.
Les diaboliques (edição inglesa: The Diaboliques; edição espanhola: Las Diabólicas). É a sua melhor obra. Foi censurada pelo então Bispo de Paris e condenada pelos poderes políticos como um «atentado à moral pública e aos bons costumes». Em 1883 o livro é reeditado mas com um prefácio explicativo: Bien entendu qu’avec leur titre de Diaboliques, elles n’ont pas la prétention d’être un livre de prières ou d’Imitation chrétienne… Elles ont pourtant été écrites par un moraliste chrétien, mais qui se pique d’observation vraie, quoique très hardie, et qui croit — c’est sa poétique, à lui — que les peintres puissants peuvent tout peindre et que leur peinture est toujours assez morale quand elle est tragique et qu’elle donne l’horreur des choses qu’elle retrace.
Um dos contos deste livro, Le Bonheur dans le crime, A Felicidade no Crime, é paradigmático deste objectivo. Barbey descreve uma senhora lindíssima, acompanhada do amante, que observa uma pantera. A descrição da semelhança entre a pantera e a mulher vale todo o livro. Está ali tudo. Com o desenrolar da história assistimos ao pormenor de crueldade com que o casal cometeu um homicídio para poderem estar juntos. E viveram felizes para sempre! Com um tal desfecho como não voltar ao início do livro e hesitar entre o riso e o horror que provoca a dedicatória: À qui dédier cela?
Onde se pretende chegar? As pessoas que menosprezam a moral, que gracejam e adoram “escandalizar” os “bonzinhos”, os “beatos”, só acordam se lhes responde à altura, no mesmo nível, isto é, muito baixo. Para estes homens nasceu Barbey. Num dos seus contos, um hóspede vai dormindo com a filha do casal, às escondidas, até que esta morre, incompreensivelmente, durante um acto sexual. O riso a que nos levam as sucessivas descrições maliciosas e eróticas é cortado com a brutalidade deste desfecho. O que fazer com o cadáver? Ela morreu no quarto dele… O pobre homem acaba por fugir. Mais tarde ainda vem o melhor. Ele descobre que tudo tinha sido uma encenação dela, talvez provocada por ingestão de fármacos. O que concluir?... Uma coisa é certa. Pode ter sido divertido enganar os pais dela na sua própria casa mas desta última “brincadeira” aquele homem não se ficou a rir.
À un dîner d’athées, Num Jantar de Ateus, é talvez o seu melhor conto. A resposta de Mesnil à pretensão de um ex-padre que tinha acabado de confessar ter dado hóstias consagradas aos suínos é admirável. Assim como a todas as provocações que recebe durante o jantar. No fim, explica o que foi fazer à Igreja nesse dia. Acaba tudo em silêncio. Les hommes… comme moi, n’ont été faits, de toute éternité, que pour étonner les hommes… comme toi.
Todo este método, deve-se reconhecer, é muito questionável. Ele destina-se, como diz a frase que se vem repetindo, a um determinado tipo de leitor. Para aqueles que acham que ter princípios é ter tabus e preconceitos. Para aqueles que acham que tudo podem questionar mas que, quando lhes fere o interesse, param então, incoerentemente, de continuar a perguntar “qual é o mal?”.
Insistindo no mesmo: tudo isto deve ser feito com a consciência da «retenção da adição», para citar Kierkegaard na sua advertência ao método de atrair pessoas a Deus através do momento estético. O objectivo, com efeito, não é responder na mesma moeda. É levar o outro a admitir que também tem princípios morais e que, fundamentalmente, destruir é muito fácil e construir, fundamentar, é difícil.
É por isto que Barbey pode ser considerado como o iniciador sistemático daquilo que poderíamos chamar “apologia negativa”. E o ambiente revolucionário francês, com autores como Voltaire, foram essenciais para o seu nascimento.
Mas Barbey é muito mais do que tudo isto. Tem análises psicológicas profundíssimas. Frases poéticas admiráveis. E é de uma perspicácia sem igual em descobrir o mal por detrás das intenções mais puras. Nem na literatura os cristãos precisaram dos filósofos da suspeita para descobrir as suas intenções mais duvidosas.
L’Amour impossible (edição inglesa: Impossible love; edição espanhola: El Amor Imposible). O título leva-nos logo à ideia de que se trata de um amor vivido mas impossível de se realizar: ou porque um dos dois não ama, ou porque têm condicionamentos sociais ou de idade, etc. A realidade é outra. Pura e simplesmente não conseguem amar. Não só um ao outro. Acabam por perceber que o amor se lhes acabou. Esta surpresa contínua na literatura chama-se Barbey.
Le chevalier des Touches (edição espanhola: El caballero des Touches). Tanto este como o próximo livro em análise decorrem no contexto narrativo da guerra da Chouannerie, entre republicanos e monárquicos, durante os anos 1772-1800. Ressalto o III capítulo: Une jeune vieille au milieu devéritables vieillards. Barbey quer destacar a importância e beleza da personagem Aimée para a história que se irá contar num serão. E como o faz? Coloca Aimée no meio dos convivas mas como surda e quase cega. Deste modo todos podem ir olhando calmamente a personagem, procurando e comentando traços que evocam a sua beleza passada. Mas será o próprio desenrolar da história que permitirá ir confrontando e revelando a beleza da sua grande alma com as marcas que deixou no seu rosto. Fierdrap será a personagem onde melhor se acusará esse aprofundamento da perspectiva pretendida: inicialmente indiferente, irá progressivamente reconhecendo a beleza sublime de Aimée. O último capítulo mostrará até que ponto Barbey consegue desnudar uma beleza assim.
Mais uma pequena nota sobre este romance histórico. É aqui que aparece o elogio ao génie impayable de la Plaisanterie, que salpica de humor cada página das obras de Barbey. Recordo, a título de exemplo, o início de um dos contos do livro Les Diaboliques. Um homem começa por elogiar a uma senhora o medalhão que ela traz ao pescoço, concretamente o rosto feminino nele esculpido. Mas este “começar” não será um pretexto. A beleza desse rosto será o objecto mesmo do interesse desse homem. Imagine-se a reacção da senhora quando se vai apercebendo que está a ser completamente ultrapassada pela sua própria jóia…
L'Ensorcelée (edição inglesa: The Bewitched; edição espanhola: La Embrujada). Barbey é um cristão. Por detrás do homem polemista está um coração que ama os miseráveis. A conversão final da personagem La Clotte, a enfeitiçada, morta pelo delírio das multidões, é de uma nobreza ímpar. Tenho pena de não poder contar aqui pois retiraria toda a surpresa desta grande obra.
Memoranda (edição espanhola: Memoranda). Recolhe os diários de Barbey desde 1836-1864. Quem sabe o que é suportar o tédio durante anos, encontrará aqui um companheiro compreensivo. É, sem dúvida, o tema mais recorrente ao longo de tantas páginas. Já para o fim dos diários, curiosamente, desaparece essa obsessão. E não se encontra uma única página de explicação dessa mudança. Eu aventuro uma hipótese. Barbey ficou vários momentos sem escrever nada. Um desses momentos, já para o fim, coincidiu com a sua conversão.
É neste livro que aparece uma confissão importante de uma das suas amigas. Ela reconhece que ter lido a tragédia Macbeth a protegeu de alguma vez pensar em praticar um assassinato. Barbey vê aqui esporadicamente confirmada a sua tese de fundo: a melhor forma de impedir que se pratique o mal é mostrar o mal em todas as suas consequências.
Também é nestes diários, que eu saiba, onde aparece pela primeira vez uma crítica ao método histórico-crítico que mais tarde será recorrente em muitos autores. Isto é, as hipóteses sobre Jesus que este método foi levantando exigem mais fé que o próprio relato dos Evangelhos.