O SENHOR DOS ANÉIS
Recensão
(Mário Rosa)
O Senhor dos Anéis ou a incoercível liberdade de criar
Poucos livros são tão conhecidos e tão mal interpretados. Continuamente se procura ver na sua história uma alegoria qualquer. Ou uma alegoria das duas guerras mundiais que o autor viveu, ou uma alegoria do Cristianismo, já que Tolkien era um católico praticante, etc. E essa foi sempre a luta que travou o autor: O Senhor dos Anéis não é uma alegoria nem uma analogia. Precisamente por esta razão, Tolkien nunca gostou das obras de ficção de C. S. Lewis. Ele procurava outra coisa.
A chave para entender a obra de Tolkien está numa pequena conferência que proferiu intitulada On Fairy Stories. E o conceito-chave da sua exposição é o de Sub-creation.
A teoria da arte do mundo antigo reduzia-se ao conceito de imitação. É certo que este conceito foi muito mal interpretado. Imitação não significava cópia. Tratava-se de uma imitação essencial que, para o ser, tinha de fugir à tentação imediata e fácil da cópia. Com o advento do Cristianismo uma nova ideia de arte se foi impondo explicitamente: a ideia de sub-criação.
Sub-criação não é criação. Esse outro conceito será essencial para a modernidade que, com o decorrer do tempo, fundando-se cada vez mais no sujeito criador, empreendeu por isso o caminho da idealização até se perder no vazio. Sub-criação foi, pelo contrário, o caminho empreendido pelas lendas e certos mitos antigos. A ideia de um Deus criador ex nihilo e de o homem feito à sua imagem e semelhança veio então acentuar e explicitar a dimensão criativa da arte.
A dimensão criativa da arte, porém, é apenas uma “dimensão”. Daí a necessidade que sentiu Tolkien de fazer e construir lendas e mitos à imagem do mundo antigo. Aí esteve sempre claro que toda a criação partia de uma criação primária. Aberta mas primária. Nada está aberto se, ao mesmo tempo, não está de algum modo fechado. A pura abertura não existe. É uma contradição dos termos. Por isso, o conceito de limitação no mundo antigo era não só negativo como positivo. O que delimita impõe um termo a uma coisa mas, ao mesmo tempo e inversamente, é o princípio a partir do qual uma coisa é.
Posto isto, perguntamos: o que pretendeu Tolkien com o Senhor dos Anéis? Dar espaço à incoercível liberdade de criar. E assim deve ser lido O Senhor dos Anéis: desfrutar da liberdade de criação do homem. Melhor: desfrutar do que o homem livremente criou. Há Hobbits. Há Elfos. Isto não chega?
Mas neste ponto devemos insistir que se parte sempre de uma criação primária, que a criação humana é sub-criação. Neste sentido, o mundo a criar deve guardar relação com o mundo primário (primary world). E aqui abrem-se dois caminhos: construir um mundo que basicamente seja uma alegoria ou analogia do mundo primário ou construir um mundo que explore as vias abertas por esse mesmo mundo primário. O segundo caminho é o do Senhor dos Anéis.
Sendo assim, é certo que o Cristianismo está na base da sua criação. Mas Tolkien volta sempre ao mesmo ponto: I have deliberately written a tale, which is built on or out of certain “religious” ideas, but is not an allegory of them (or anything else) (Letter 212).
Uma nota final sobre a questão de O Senhor dos Anéis não apresentar nenhuma grande paixão. A mesma crítica foi feita ao poema épico Beowulf . E a resposta de Tolkien é magnífica: Beowulf is a man, and that for him and many is sufficient tragedy. O que o homem não pode mesmo prescindir é da amizade.